Day1 | Manuella Curti: “O que a vida quer da gente é coragem”

Manuella Curti
Manuella Curti

Manuella é presidente do Grupo Europa, pioneira em tratamento de água residencial de ponto de uso no Brasil.

Aos 26 anos, deixei de ser advogada para me tornar presidente da Purificadores de Água Europa. Essa é a história que conto no Day1.

Minha história começa primeiro com a história do meu pai.

Ele veio de uma família pobre em Minas Gerais, estudou só até a quarta série, mas era autodidata. Sempre foi um empreendedor nato.

Era apaixonado pela vida, carismático, disciplinado, positivo, inspirador, amava as pessoas. Começou a vida como vendedor porta a porta de fascículos da Editora Abril. Em 5 anos, virou vice-presidente da divisão. Mas uma enchente o levou à falência.

Foi aí que, em 1984, meu pai criou ao lado do sócio dele, o Antonio Carlos, a Purificadores de Água Europa, pioneira em tratamento de água residencial de ponto de uso no Brasil. Eles eram a dupla perfeita: meu pai era o comercial, e o Carlos era quem tocava a fábrica e desenvolvia os produtos.

Quinze anos depois, em 1999, meu pai foi diagnosticado com um câncer grave. Ele tinha três tumores grandes na cabeça e um nódulo no pulmão. Minha mãe teve que obrigá-lo a se internar para fazer as cirurgias. Primeiro fez a do pulmão e depois precisaria operar a cabeça.

O problema é que a empresa era meu pai.

E existia um grande risco de ele não voltar.

Entre uma cirurgia e outra, ele pediu para a enfermeira:

— Preciso de 20 cadeiras aqui hoje às quatro da tarde, vou fazer uma reunião.

— Reunião? O senhor acabou de sair de uma cirurgia e está no pré-operatório de outra cirurgia…

— Justamente por isso! Você não vai me tirar essa chance, né?

— Eu não posso, vou ser mandada embora!

Aí ele entregou o cartão de visitas para ela e falou:

— Se você for mandada embora, eu te contrato. Você vai ser muito mais feliz e ganhar mais dinheiro, pode ter certeza!

O fato é que a reunião aconteceu. Foi o processo sucessório às pressas que meu pai tentou fazer com as pessoas de confiança. Apesar de tudo isso, ele voltou. E a gente tem certeza que ele só voltou por causa da empresa. Ele ainda trabalhava de 8 a 10 horas por dia, com muita disciplina e determinação. Depois desse episódio, ele teve mais 11 tipos de câncer, mas fazia o tratamento de manhã e voltava pra empresa à tarde. Ele tratava a doença como um resfriado. Nunca parou.

É por isso que minha mãe foi fundamental na nossa criação. Enquanto ele se dedicava por inteiro à empresa, ela segurava as pontas em casa, cuidando de mim, da minha irmã e do meu irmão.

Eu sempre fui idealista e indignada

Desde cedo, frequentávamos os eventos e todos a partir de determinada idade foram trabalhar lá.

Aos 16, eu cobria férias da secretária.

Aos 18, era vendedora.

A empresa nasceu no mesmo ano que eu, então eu brinco que era era minha irmã mimada, aquela sempre recebia mais atenção.

Eu estudei Direito, mas sempre evitei trabalhar com meu pai desde o início. Até que, no quarto ano da faculdade, acabei cedendo. Trabalhei reestruturando o departamento jurídico da Europa, mas pensava em sair assim que me formasse. Como ele não queria que eu saísse, chegamos em um acordo: eu abri meu escritório ao lado de um sócio em setembro de 2008 e meu pai foi meu primeiro cliente.

A sorte do meu pai é que tinha meu irmão

Ele é 4 anos mais velho do que eu, e carregava o nome do meu pai. Passou por várias áreas na empresa, trabalhava lá desde os 13 anos, mas meu pai nunca reconheceu isso abertamente. Falar de sucessão na minha família era um grande tabu. A gente simplesmente não tocava no assunto.

A primeira vez que falamos disso foi na noite de Natal de 2009. Depois de 16 anos trabalhando na empresa, ele recebeu seu maior reconhecimento: meu pai finalmente disse que estava pronto para iniciar um processo de sucessão da gestão e que ele estava capacitado profissionalmente e amadurecido emocionalmente para assumir a empresa.

Dois dias depois dessa conversa, no dia 27 de dezembro de 2009, meu irmão foi assassinado na porta da padaria Dona Deôla por seu segurança, após uma discussão de menos de um minuto.

Esse foi o Day1 na minha vida, na vida da minha família e na vida da empresa

Essa não é o tipo de situação da qual a gente se recupera, mas com o passar do tempo, aprende a lidar. Se 11 incidências de câncer não mataram o meu pai, a morte do meu irmão acabou matando. Ele entrou em depressão. A vida perdeu o sentido pra ele. Perdeu seu brilho, sua força, sua coragem e após 6 meses, meu pai também nos deixou. Até aquele momento, meu pai era a alma da empresa. E nos 9 meses seguintes, ela seguiu sem uma liderança clara.

Isso gerou muita insegurança, uma crise geral de confiança.

Até que eu me reuni com os outros sócios — minha mãe, minha irmã mais nova e o Carlos — e tivemos uma conversa super importante: “nós não nos escolhemos, mas estamos nessa situação. Aconteça o que acontecer, a gente não pode se desentender, temos que conversar.”

Nessa conversa, tínhamos que decidir quem seria a pessoa a liderar a empresa. Minha mãe não tinha condições, minha irmã ainda estava na faculdade e o Carlos era responsável pela operação da fábrica.

E foi então que os sócios decidiram que eu seria a nova líder da empresa.

Em março de 2011, com 26 anos, deixei de ser advogada para me tornar presidente do Grupo Europa. Algumas coisas acontecem e a gente não sabe bem o porquê. Talvez um dia, lá na frente, a gente venha a descobrir.

Ou talvez não descubra nunca. Mas com aquela situação toda acontecendo, minha primeira reação foi de ir pra guerra!

Não podia deixar a peteca cair.

Mas a verdade é que a peteca já estava caindo e por dentro eu tinha muita dúvida sobre tudo.

Eu era jovem, mulher e filha do dono em uma empresa super centralizada e tradicional cheia de homens na faixa dos 40 anos. Havia uma projeção gigantesca em cima de mim sobre como eu deveria ser e agir. Eu ouvia coisas como: “Na época do seu pai não era assim…” ou ainda “Se fizer isso você vai quebrar a empresa…”. Quanto mais insegurança e responsabilidade eu tinha, mais perdia minha identidade.  Eu sabia que a empresa ia ter que mudar e queria achar caminhos. Não sabia por onde começar, para onde ir ou como ia levar a empresa pra esse lugar. Não sabia nem onde procurar ajuda.

Meu pai costumava dizer que as oportunidades passam o tempo todo na nossa frente, a gente tem que estar atento para agarrá-las. Naquele momento, eu só tinha essa opção. E nesse momento, foram aparecendo alguns anjos da guarda. Meu primeiro anjo foi o Marcelo Cherto, mentor da Endeavor. Eu contei para ele da minha situação e ele deu um cartão da UM% falando que eu deveria fazer coaching.

Eu nunca tinha ouvido falar disso. Liguei lá: “Oi, eu preciso de coaching”. Contei minha história para ela, e ela me sugeriu: “Olha, talvez seja melhor você fazer a formação para ser coachee.” Nesse curso eu encontrei uma pessoa muito especial chamada Wilson Poit. Lembro que quando o Poit terminou de contar a história dele eu desabei. Ele me olhou nos olhos e falou: “calma. vai dar tudo certo.”

E isso me deu muita força.

A partir dali, eu o encontrava a cada 15 dias, ele me fazia uma série de perguntas que eu não sabia responder, mas sempre voltava para a empresa com a lição de casa. Eu ia visitar a empresa dele, para entender dos processos, entender como é feita uma reunião de diretoria, de conselho, como são medidos os indicadores…E ele também participou por um tempo do Conselho da Europa.

E tudo isso que eu fui aprendendo nesses primeiros dois anos de repente virou um redemoinho na minha cabeça quando eu assisti a uma palestra do Ricardo Guimarães. Em determinado momento, ele soltou a seguinte pergunta:

“A gente tem que se perguntar, se nossa empresa morrer, alguém vai sentir falta dela?”

Aquilo foi muito forte para mim. Será que alguém sentiria falta da empresa que eu estava liderando?

Até então, eu me perguntava o tempo todo: Por que eu? Por que agora? Por que fazer isso? E a partir daquela palestra, passei a perguntar: Para quê? Para que eu estou nessa empresa de tratamento de água, para que ela existe no mundo? Para que vou acordar todos os dias e vir trabalhar?

E a minha busca por um propósito se juntou à busca da empresa por um propósito. Esse era o início do caminho que eu estava buscando!

Comecei a ver a empresa como algo que estava no mundo para servir e estava lá para descobrir qual seria esse papel. E me dei conta de que estávamos lidando com a água, um elemento essencial para a vida. A água é dignidade, é direito, é saúde.

E isso levou a uma mudança de propósito, que refletiu em todas as nossas escolhas a partir daí. Até mesmo a tomarmos decisões mais difíceis.

Uma delas, por exemplo, é escolher criar produtos que durem a vida inteira, mesmo que fosse mais lucrativo fazê-los serem trocados a cada 5 anos. Ou ainda desligar distribuidores da nossa rede que são líderes em venda porque têm práticas comerciais que não condizem com nossos valores.

Nesse processo de ressignificar o que nós fazíamos e quem nós éramos, eu me dei conta de duas coisas: o processo de sucessão começou quando nasci, dentro de casa: foi o exemplo, a família e os valores que criaram as bases para o meu estilo de liderança. E uma empresa nunca pode depender de uma só pessoa.

Se a marca faz parte da vida das pessoas, ela é das pessoas. É uma baita irresponsabilidade achar que todo o processo tem que acabar em você. Eu queria construir um modelo de gestão que não dependesse só de mim: sair de um modelo centralizador para criar uma gestão mais participativa. Essa inquietação me levou a iniciar um movimento de transformação cultural de dentro pra fora. Começamos trabalhando o reposicionamento de marca da Europa e depois investimos também nos processos de formação de lideranças.

Propósito desde a infância

Eu desde pequena sempre quis me envolver em coisas que fizessem a diferença na vida de muitas pessoas. E para realizar isso, nada melhor que uma companhia que cuida da água para transformar vidas. Foi com esse mindset que desenvolvemos várias iniciativas como hidratação de eventos que diminui os resíduos gerados de copo plástico e garrafinhas em uma convenção, por exemplo, apoiamos um longa metragem que é um alerta para a questão da água em São Paulo e também contribuímos para trazer para o Brasil um laboratório de inovação em água para jovens brasileiros mudarem realidades.

Dessa forma, caminhamos para criar uma empresa-cidadã, contribuindo além da geração de empregos, com a criação de um país mais próspero e desenvolvido em todos os sentidos.

Pouca gente sabe, mas o Brasil é a Arábia Saudita da Água. Nós temos 12% dos recursos hídricos do mundo, mas mesmo assim, 35 milhões de pessoas no Brasil não têm acesso à água potável e 100 milhões, metade da população, não tem coleta de esgoto. A minha irmã gêmea mimada me diz todos os dias o quanto trabalho nós ainda temos pela frente. E são essas possibilidades de fazer diferença que me fazem sair da cama todos os dias.

E sempre que eu me sinto impotente, quando parece que não dá para fazer, lembro de uma frase do nosso querido Guimarães Rosa que me resgata para o caminho que quero seguir e diz assim:

O correr da vida embrulha tudo. A vida é assim: esquenta e esfria, aperta e daí afrouxa, sossega e depois desinquieta. O que ela quer da gente é coragem.